havia uma lacuna naquele espaço. talvez, fosse culpa da chuva que deixava nossos dias frios. talvez, fosse o espaço vazio que beirava nossos corpos já tão distantes.
Ele sentou no sofá assim que entrara no apartamento. a janela da sala encontrava-se aberta, com o soar de gemidos que a brisa gélida daquela tarde fazia ecoar pelo apartamento. as persianas dançavam, sem compasso ou algo que lhe marcasse ritmo . Ele olhou em volta e viu que tudo estava no mesmo lugar da manhã, dando sinal que Ela não havia chegado em casa ainda. Ele sentiu falta d´Ela.
não tardou e levantou, sentido banheiro, onde tomaria um banho para esquentar a pele que agora era fria. abriu o chuveiro e encostou o corpo na parede do box, que permitia sentir o bater pulsante do coração. podia ouvir as gotas cairem lentamente no chão, o mesmo barulho que ouvira da chuva. ouviu o ranger do elevador.
a porta abriu. Ela entrou. jogou o corpo molhado no sofá e suspirou pelo cansaço do dia de chuva. ouviu o barulho vindo do banheiro. imagino que Ele já estava em casa. suspirou novamente. levantou do sofá, caminhou até o quarto e tirou a roupa molhada. Ele adentrou o quarto e olhou para aquele corpo que tanto admirava. Ela se virou, na tentativa de fugir dos olhos dele. foi até o banheiro e ligou o chuveiro. enquanto a água corria por seu rosto, Ele entra no banheiro:
- o que você tem?
- não tenho nada. quero só tomar um banho quente.
- e não me diz mais oi? e foge do meu olhar?
- me deixe em paz por agora, é a única coisa que te peço.
- olha, eu sei que o que aconteceu ontem causou um estresse entre nós. mas acho que podemos superar isso.
- podemos conversar depois que eu sair do banho, por favor?
Ele sai e fecha a porta atrás de si. Ela agachou no box. sentiu a água, agora, um pouco mais gelada do que antes. olhou para seus dedos que enrugavam sem ela perceber. isso sempre acontecia, desde que era criança, quando brincava com a mangueira no quintal da vó. pegou seu sabonete de camomila e esfregou o corpo com tanta delicadeza que já não lembrava a última vez que fizera aquilo. tantas coisas já estavam passando dessa forma, tão desapercebido, que ela não lembrava de quando fora a última vez que fizera um tanto de outras coisas. aliás, até lembrava, desde que Ele se tornou obsessivo por seus passos e, desde então, sua vida se tornara algo que era fora de seu controle. o tempo já não era seu. os amigos já não eram seus. os dias já não eram mais vividos. ouve o barulho do rádio que Ele ligara na sala. ouve o cd que Ele lhe dera no primeiro dia em que sairam. isso já não lhe traz mais sensação alguma. Ela já não sente por Ele o que ele pensa sentir.
Ela desliga o chuveiro, enrola a toalha no corpo e vai para o quarto, tendo a certeza de trancar a porta dessa vez. tira do armário um moleton e sua camiseta de Harvard que seu irmão lhe mandou. coloca meias coloridas e chinelo. vai para a cozinha.
- Ela, podemos conversar?
- Ele, não sei se estou muito a fim agora. tive um dia cansativo e essa chuva, para ajudar, me ensopou quando sai do trabalho. estou com fome e com sono. deixa essa conversa para outra hora.
- mas Ela, eu queria te pedir desculpas. eu sei que errei. poxa, queria te pedir perdão pelo que fiz ontem. juro que não queria fazer cena mas, te ver tomando café com outra pessoa me deixou furioso.
- Ele, eu estava tomando café. sabe o que é isso? tomando um café!
- agora eu sei. mas sei lá o que burros na água eu imaginei. te peço desculpas de verdade. você sabe que amo você e sei o quanto chamas atenção por onde passa. tenho ciúmes desses caras que não tem respeito por uma mulher casada!
- sabe quantas vezes isso tem acontecido nesses meses? e quantas mais irá acontecer?
- olha querida, eu não posso jurar nada. mas quero tentar. você é a mulher da minha vida e sem você não sou nada. não quero te perder. me desculpa?
- eu já não sei Ele. são tantas possibilidades de que isso pode acontecer... deixei de sair com meus amigos, minha família reclama da minha ausência, você me liga toda hora no trabalho... como posso viver assim?
- querida...
- querida não. eu já não sei se essa relação faz bem para nós. fomos tão felizes... até você surtar com esse ciúme louco. parece que não somos nada mais. sinto que há um vazio tão grande entre nós.
- mas podemos reverter isso. que tal uma nova lua de mel? sei que você logo entrará de férias e...
- não. já não quero nada vindo de você. aliás, até quero. quero paz. quero ter minha liberdade de ir e vir. quero poder rir sem você ficar olhando para os lados, tentando ver se eu estou flertando com alguém. Ele, fomos um corpo só, em algum momento de nossas vidas. mas, hoje, percebo que somos dois seres dividindo um espaço, uma vida, um corpo vazio.
- me deixa tentar, pelo menos!
- não. o que senti por ti foi tão gostoso. vivemos dias tão profundos, que me perdia naquela sensação que me deixa fora de mim. mas isso passou... não há mais nada aqui!
- me deixa tentar! pelos dias que fomos felizes. pelo que construimos juntos. por tudo o que fiz por ti.
- já basta. isso foi o fim. chega de discussões, de promessas quebradas, de vizinhos vindo ver se está tudo bem. cansei dessa vida... nosso casamento chegou ao fim.
- não...
Ela sai da cozinha e vai para o quarto. abre sua mala e coloca todas as suas roupas, seus cds, livros. apanha um casaco que estava na beirada da cadeira da escrivaninha. vai para a sala e pega tudo o que era seu que estava naquele lugar.
- Ela, onde você vai?
- estou indo para a casa da minha mãe. pode ficar com as coisas do apartamento. que você seja feliz.
- você está indo embora? você não pode ir embora e me deixar aqui!
- eu vou e ponto. vou fazer algo que deveria ter feito a muito tempo, deixar você sozinho com sua loucura.
Ela apanha o gato que estava no canto da sala. arrasta sua mala até o hall e aperta o botão do elevador. Ele está na porta, de cuecas, com o olhar mais sem brilho que já vira. o elevador chega e Ela entra com sua mala e o gato. vê, pela fresta do elevador, a última imagem envelhecida daquele homem, por quem, um dia, teve amor.
- Ele, agora eu vou viver.
Ela sai do prédio e sente os primeiros pingos frescos que não sentira à tanto tempo. na verdade, e somente depois ela perceberia isso, que o que ela sentira, foi a sensação de liberdade de sua vida.
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