textos de própria autoria, de própria vida. minha vida, sua vida, nossa vida.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

pretérito imperfeito

meu bem, já estou atrasada. como todos os dias, os dias passados e, possivelmente os futuros, meu relógio se tornou o maior inimigo do meu tempo. perco os dias, já que as folhas do calendário estão soltas no chão largadas pela ventania que abriu a janela e tirou as coisas de seu lugar. as folhas do vaso de flores estão amareladas sobre a mesa. os porta-retratos estão virados, sem imagem alguma. tudo o que era, de certo meu, ficou sem lugar, sem tempo, sem espaço.
os ponteiros permanecem estáticos mesmo ao som do velho tic tac que não cessa, apesar da pressa. tudo parece ter saido da ordem. tudo parece estar em um ritmo atrasado ou anterior ao que deveria estar. as xícaras estão com um borrão de café do dia de ontem. os pratos ainda exibem o resto da comida não provada, deixada para os cães.
eu estou atrasada com as cartas que deveria enviar para minha mãe. estou com as contas pendentes por não lembrar que dia exato é ou quando devo quitá-las. as roupas estão no armário com cheiro de mofo pelo tempo que estão guardadas sem uso. os livros adquiriram uma camada espessa e pegajosa que confina meus dedos a não tocá-las. fiquei sem o prazer da leitura, da oportunidade de imaginação.
a boca permanece seca, mas existe uma obstrução nasal que me abstém da vontade de beber dágua que sai dos encanamentos da casa. a geladeira está com um odor fétido que inibe minha fome de se manifestar ou resguardar as forças que ainda insistem em ser vitais. meu corpo apresenta uma pele amarelada e pequenas manchas roxas que fogem da luz solar e da captação de energia natural. os olhos estão fundos, os lábios amargos, e existe uma secreção nasal que é constante e opaca. as unhas estão fracas e quebradiças.
o tempo do pretérito imperfeito me fez perder a ordem natural da vida.

*foto "Relógios Moles" (1931), Salvador Dalí.

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